Marco Civil: avanço para responsabilização digital e proteção contra abusos online

Análise jurídica sobre os votos do STF no Marco Civil da Internet e os impactos da decisão na responsabilidade das plataformas digitais


Almajur/Freepik-IA, 2025


Por Líliam Raña

O julgamento em curso pelo Supremo Tribunal Federal (STF), envolvendo os Recursos Extraordinários que analisam o artigo 19 da Lei nº 12.965/2014, põe em evidência essa tensão entre liberdade de expressão, responsabilidade civil e proteção de direitos fundamentais. O foco da controvérsia é no dispositivo do Marco Civil da Internet, que, na redação original, exige ordem judicial específica para que provedores de aplicações sejam responsabilizados por danos causados por conteúdos gerados por usuários.

O julgamento, iniciado com votos dos ministros Dias Toffoli e Luiz Fux (relatores), tem sido marcado por posições relevantes que propõem o redimensionamento desse dispositivo, considerando o papel ativo de determinadas plataformas na moderação, impulsionamento e recomendação de conteúdos. Até o momento, os ministros Cristiano Zanin, Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes e André Mendonça apresentaram votos que, embora com enfoques distintos, sinalizam uma revisão significativa do atual modelo normativo.

A redação atual do art. 19 do Marco Civil estabelece que os provedores só podem ser responsabilizados civilmente se, após ordem judicial específica, não removerem o conteúdo ofensivo. O objetivo do dispositivo era proteger a liberdade de expressão e evitar a censura privada por parte de empresas. Contudo, esse modelo tornou-se insuficiente diante da atuação ativa das plataformas digitais, que passaram a desempenhar um papel editorial ao impulsionar conteúdos com base em algoritmos, coletar dados, vender anúncios segmentados e interferir na disseminação de informações.

Essa nova realidade motivou críticas ao regime de responsabilização, considerado por muitos como excessivamente protetivo das plataformas, em detrimento da proteção eficaz de direitos fundamentais. A jurisprudência inferior oscilava, ora exigindo ordem judicial para a responsabilização, ora aplicando exceções (ex. discurso de ódio ou fake news eleitorais). Daí a importância do pronunciamento vinculante do STF, no âmbito da repercussão geral.

Consensos e divergências

O ministro Zanin propôs a tese de que o art. 19 é parcialmente inconstitucional, por criar um estado de omissão frente a situações que exigem ação imediata para proteger bens jurídicos relevantes. Defende um modelo diferenciado conforme o tipo de provedor (neutro ou ativo) e o tipo de conteúdo (manifestamente ilícito ou duvidoso). Estabelece que plataformas devem remover de forma célere conteúdos evidentemente ilícitos (como perfis falsos, pornografia infantil, incitação à violência ou golpe de Estado), mesmo sem ordem judicial, quando notificadas. O ministro introduz ainda a obrigação de implementação de sistemas de notificação, relatórios de transparência e ações educativas.

Gilmar Mendes sustenta que o art. 19 é inconstitucional quando confere imunidade total a provedores que atuam de forma ativa na propagação de conteúdo. Propõe a divisão em três regimes: (1) o judicial, aplicável à liberdade de imprensa e disputas privadas; (2) o da presunção de responsabilidade, aplicável a impulsionamentos e anúncios; e (3) o geral, conforme o art. 21 do Marco Civil, quando há notificação extrajudicial. Destaca a necessidade de mecanismos técnicos para remoção de conteúdos idênticos já classificados como ilícitos, e a obrigação de agir imediatamente diante de crimes graves, como terrorismo, violência contra crianças ou ameaças ao Estado de Direito.

Com viés mais conservador, André Mendonça defendeu a plena constitucionalidade do art. 19, mas propôs um conjunto de teses que, na prática, mitigam a rigidez do modelo original. Reconhece que perfis falsos ou usados para atividades criminosas devem ser removidos sem necessidade de ordem judicial, desde que observados protocolos de devido processo. Reitera a necessidade de fundamentação nas decisões judiciais de remoção, defende a proteção de mensageiros privados como WhatsApp e Telegram, e sugere que a autorregulação regulada seja promovida por meio de políticas públicas e iniciativa do Legislativo.

Acompanhou os relatores (Toffoli e Fux), negando provimento aos recursos e apoiando a responsabilização ampliada das plataformas. Embora seu voto não tenha sido exposto em detalhes no momento da suspensão, é sabido que o ministro tem adotado posição firme na defesa do Estado Democrático de Direito contra o uso abusivo das redes.


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Impacto na prática forense

O julgamento em curso terá impacto direto na atuação da advocacia digital e contenciosa. Advogados que representam vítimas de danos morais, crimes contra a honra, exposição indevida ou fake news terão novos fundamentos legais para responsabilizar plataformas de forma mais célere, inclusive por via extrajudicial. Por outro lado, advogados que assessoram empresas de tecnologia deverão reestruturar políticas de moderação, termos de uso e fluxos internos de compliance digital.

A criação de obrigações procedimentais (como canais de notificação, transparência ativa, revisão de decisões automatizadas e representação legal no país) exige assessoria jurídica especializada em privacidade, proteção de dados e regulação algorítmica. Haverá espaço crescente para atuação preventiva, incluindo due diligence digital, auditoria de conteúdo e educação corporativa.

Da liberdade à responsabilidade

O avanço da decisão do STF deve ser compreendido como uma resposta à complexificação do ambiente informacional. A internet deixou de ser uma arena livre e neutra para se tornar espaço de disputa política, econômica e simbólica. Plataformas passaram a lucrar com engajamento tóxico, discurso de ódio, desinformação e radicalização algorítmica.

A decisão do Supremo busca um equilíbrio entre liberdade de expressão e proteção de direitos. Ao exigir mecanismos eficazes de moderação, mas também garantir que o usuário possa recorrer de decisões automatizadas, promove-se a responsabilização sem censura. A autorregulação regulada, prevista em vários votos, é um modelo que combina liberdade empresarial com obrigações jurídicas, reconhecendo que o espaço digital não é terra sem lei.

A partir dessa nova interpretação constitucional do art. 19, o Brasil avança rumo a uma internet mais segura, plural e democrática, alinhando-se a tendências internacionais como o Digital Services Act da União Europeia e o debate global sobre responsabilidade de intermediários.

A decisão do STF é um divisor de águas para o Direito Digital brasileiro. Ao revisar a aplicação do art. 19 do Marco Civil da Internet, a Corte reconhece que a liberdade de expressão não pode ser escudo para abusos sistemáticos e que as plataformas devem exercer seu poder com responsabilidade e transparência.

Trata-se de um avanço institucional necessário diante do uso político, criminoso e discriminatório das redes sociais. Com impactos significativos para a advocacia, o julgamento oferece novas ferramentas para a defesa de direitos fundamentais e impõe padrões mínimos de diligência às empresas de tecnologia. É, sobretudo, um passo firme na construção de um ambiente digital mais ético, seguro e comprometido com a democracia.


Direito Digital Marco Civil

Temas Jurídicos: Direito Digital - Responsabilidade Civil - Devido Processo Legal - Controle de Constitucionalidade - Autorregulação Regulada

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